Dracena
Na aldeia, no pé da montanha, conta-se a lenda de que desde menina
ela soube que lhe faltava algo. Por isso
lia sem parar, era curiosa, perguntava tudo até se sentir satisfeita. Mas não
se sentia! Professores fugiam dela pelos corredores. Colegas nerds se escondiam
atrás dos livros.
Na adolescência se tornou rata de biblioteca dando cansaço às
bibliotecárias! Seu cartão foi substituído várias vezes por falta de espaço.
Mudou de religião como quem troca de roupa. Podia-se vê-la com cabeça raspada e
vestindo túnica numa semana e na outra discursando sobre a Bíblia ou se dizendo
Wicca. Fez parte de vários partidos políticos, participou de passeatas, liderou
grêmios. Tentou fazer faculdade de veterinária, designer, teologia, cinema e
geologia. Não se formou em nada!
Resolveu escrever contos, mas antes rascunhou algumas histórias
infantis, que deixou de lado. Passou para o suspense e quis defender uma tese: “A vida sexual dos macacos do Himalaia
sucumbindo aos progressos vindos com as ferrovias” – mas abandonou a idéia
por não se interessar por transportes.
Trabalhou na recepção de um cemitério para entender melhor o
comportamento das famílias que perdiam entes queridos, só ficou algumas
semanas, por concluir que a falsidade era o principal elemento durante as cerimônias.
Depois resolveu se aventurar como assistente de cozinha de um grande
restaurante de comida tailandesa, não deu certo. Foi também lustradora de
talheres de prata, acompanhante de cachorros, manicure, treinadora de cavalos
num circo, repositora de lâmpadas de postes em estradas.
Um dia resolveu que conheceria o mundo, pegou a mochila, jogou nas
costas e foi.
Visitou cidades ricas, circulou por bares, igrejas, praias e
escolas. Conheceu gente esnobe, humilde, pés no chão, ricos e miseráveis.
Conversou com sábios e gente que não tinha nada a dizer. Com crianças, donas de
casa, pastores e músicos. Viu grandes animais, soltos e enjaulados, curiosos e
domésticos, mortos de fome e vestidos como gente. Comeu boa comida, quente e
saudável, mas também gafanhotos, folhas e sopas ralas. Dormiu em lençóis de
seda e de algodão, em colchão de palha e sob a chuva, ao luar e na praia, no
frio do deserto e no gelo das montanhas. Usou roupas grossas de couro
mastigados por gente, tangas, rendas e jeans surrado. Nadou em rios ao lado de
botos e em mares sob o olhar de baleias.
Um dia de tanto andar e por se sentir cansada e velha, sentou-se.
Olhou ao redor e se viu num platô, no
alto de uma montanha coberta de capim rasteiro, onde o vento cantava cortante.
Dali podia-se ver, lá embaixo no vale, uma pequena aldeia. Ao longe um rio
seguia como uma imensa cobra. No céu, o sol se punha pálido e uma única estrela
começava a brilhar. Ela ficou assim parada, quase sem respirar absorvendo o
momento. Seu peito foi se enchendo de uma grande satisfação, como se finalmente
entendesse o significado de todas as coisas. E quanto mais a emoção crescia,
mas o peito precisava de ar. Ela então inspirou o máximo que pode e sentiu o
peito se abrir. Seu corpo rasgou-se como um casulo que se abre para o
nascimento de uma borboleta. Suas pernas transformaram-se e ela pode ver sua
pele transformando-se. De suas costas grandes asas surgiram e ela pode enfim
soltar o grande grito, liberando bolas de fogo! Nesse instante ela se lembrou do
imenso dragão que vivia dentro de seu corpo. Lembrou-se que fora um ovo
eclodindo numa caverna nos primórdios dos tempos, das perseguições, das caças,
das guerras, do extermínio de seus semelhantes, dos pedidos aos deuses pela sua
sobrevivência, de seu coração puro, da mística metamorfose, da constante
insatisfação por não se encaixar em nenhuma sociedade, mas que agora estava
livre para viver no alto da montanha, bem perto do céu, com todas as suas
dúvidas respondidas, com todas as lembranças de séculos revividas, com todos os
aprendizados de mistérios revelados. Agora ela era o que sempre fora: uma
Dracena! Uma dragã-fêmea! A última de sua espécie!
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